OBS: Para melhor aproveitar o post a seguir, leia primeiro o texto Sete Pecados, de Felipe Altarugio.
- Padre, eu preciso me confessar...
Foi o que disse o homem bem vestido enquanto entrava no
confessionário e acendia um cigarro. O padre, que mal acabara de passar as
penitências de um senhor de idade preocupado com seus problemas de bebida, foi
logo interrompendo.
- Fumar na casa do senhor não é permitido!
- Pô, mas é claro!
Desculpe-me, padre, acho que o nervoso não me deixou pensar direito!
- Tudo bem filho, me conte o que te aflige.
- Olha padre, a minha história começa em 2007. Acho que
aquele foi um dos piores anos de minha vida! Eu tinha acabado de ser eleito presidente
do maior clube de futebol do estado. Talvez o maior do país, quiçá do mundo.
- Mas eu não entendo... – Interveio o padre, bastante
confuso – você disse que foi o pior ano de sua vida?
- Sim padre, sim. Foi o pior. Juro para o senhor que me
esforcei tanto quanto pude, mas não tive tempo de evitar a tragédia. Este clube
foi rebaixado para a segunda divisão do Brasileirão. Sabe, o presidente
anterior tinha conquistado muitos títulos e tudo mais, mas ele estabeleceu uma
ditadura que trouxe danos gravíssimos ao clube. Quando eu assumi, já sabia
disso. Sabia que ia ter muito trabalho e o rebaixamento era a prova disso.
- Que atitude louvável!
- Por que louvável padre?
- Ora meu filho, esta é uma das maiores virtudes que um
homem pode ter! A diligência! É quando nos prontificamos a nos empenhar em
alguma coisa na qual acreditamos. Qualquer um assumiria a presidência de um
clube que está em boa situação, mas a grande maioria das pessoas não teria
disposição suficiente para começar de baixo como você fez!
- Bom, pode até ser padre, mas a parte ruim ainda não chegou.
O primeiro ano de gerência do clube foi muito boa, como obrigatoriamente
deveria ser. Contratei um treinador gaúcho sensacional. Ele montou um grupo de
confiança e não teve problemas para nos colocar de volta na série A. No
entanto, neste ano não conseguimos vencer a Copa do Brasil. Perdemos na final!
Inacreditável padre, inacreditável. – o homem pegou um cigarro e aproximou de
sua boca – Ah! Desculpe-me padre, quase esqueço de novo.
- Não se preocupe com isso, prossiga.
- Bem, como eu estava dizendo, perdi a Copa do Brasil,
mas, para ser bem sincero, consegui algo muito bom. Nós fizemos entrar em vigor
um estatuto no clube que impede a reeleição de presidentes. Fiz isso porque
acho um absurdo o que outros sujeitos fizeram e ainda fazem em seus clubes. Eles
tentam perdurar o máximo possível no comando, começam a se sentir donos das
equipes, isso não se faz!
- Conheço bem o tipo, – comentou o religioso – mas espere
um pouco. Nem você mesmo pode se reeleger?
- Não, padre! Claro que não! Eu não quero me reeleger, não
quero mais saber de estar na mídia ou qualquer coisa assim. Além do que, se eu
ficasse dois mandatos e no fim do segundo sugerisse o estatuto, todos ririam de
mim e esperariam que eu fosse embora para refutá-lo. Eu precisava fazer isso
funcionar, eu precisava que ele entrasse em vigor; o torcedor merece isso. Aceitar
o fato de que não vou me reeleger aumenta minha força argumentativa!
- Esplêndido! Quanta temperança você
tem! Digo mais, isso é uma demonstração de caridade também. É formidável, ao
contrário de outros, gulosos e invejosos
que não conseguem largar o osso e pouco se importam com os outros, você tomou
esta decisão sem pensar em si mesmo, sabendo se controlar e prezando o bem dos
outros!
- Sim, sim, sim, tá bom, padre, mas
isso não é nada perto do lado negativo! Eu preciso de um cigarro! Não, calma,
vou conseguir contar direito. Enfim, 2008 fora um bom ano, mas 2009 foi muito
melhor. Padre, que sucesso. O ídolo maior de nosso esporte veio jogar no
nosso time. Foi fantástico, ele marcou muitos gols, alavancou nossa imagem de
forma espetacular e, além disso, rendeu uma melhora brusca em nosso marketing. Estou
muito feliz com esse aspecto, aliás. Hoje tanto meu time quanto um de nossos
maiores rivais estão alcançando um padrão europeu de faturamento. É uma
tendência, me alegro muito em ver os dois crescendo assim. Faz bem para o país.
A administração deles foi pioneira nisso. Devo admitir: aprendi bastante com o que
lá fizeram.
- Não é possível, você está se
confessando ou se exibindo? – questionou o padre, muito feliz com o que ouvia –
essa é a mais importante das virtudes, a humildade. Muitos teriam a ira
despertada pelo sucesso alheio, mas você não só se aproveitou dos acertos de
seu rival para crescer, como vê a ascensão dele como uma coisa positiva.
- Padre, pare de me elogiar! Você
ainda não sabe de meu erro. Foi em 2010 que ele começou. No primeiro semestre,
deixei o Campeonato Paulista de lado e me foquei em vencer a Libertadores. Ah,
a Libertadores. Vencê-la é o sonho dos torcedores de meu clube. Era tudo o que
eu mais queria. Nós estávamos fazendo 100 anos! Era o presente ideal. Mas,
infelizmente, perdemos. Um jogo no Rio com o campo encharcado mais um jogo em
São Paulo onde tivemos um apagão na defesa e pronto. Lá se iam nossas chances. Foi
decepcionante, não merecíamos.
- Entendo, deve ter sido
frustrante...
- O senhor nem imagina, padre, – o homem
se esforçava para não derramar a lágrima contida em seu olho – o senhor nem
imagina... Mas acontece! – falou ele, erguendo a cabeça – Isso não era motivo
de mudar a direção do trabalho. Decidimos manter o treinador, manter o elenco e
trabalhar para o Campeonato Brasileiro que estava começando.
- Ótimo! Você soube ser paciente!
- Não tão rápido, padre. Uma notícia acabou mudando nosso
planejamento. O Muricy não quis treinar a seleção, ou o time dele não deixou,
sei lá o que aconteceu. O fato é que depois da recusa a CBF precisava de outro
nome, aí aconteceu o que eu temia. O Mano pediu para sair. Como eu ia dizer
não? Eu precisava dele, ele ia ganhar o Brasileirão, eu sei que ia, eu seria perdoado
por meu erro na Libertadores. Mas eu não podia segurá-lo. Ele merecia aquilo,
queria aquilo. E se eu precisava dele, bom, o país também precisava.
- Que nobreza de sua parte. Isto se
chama castidade sabia? Ao invés de desfrutar de algo que com certeza seria bom
para você, sua consciência conseguiu fazer com que você fizesse a escolha
certa.
- Bem, não tão certa... Com a saída
do Mano eu precisava de outro treinador. Aí eu decidi contratar o Adílson.
- Batista?!
- O próprio...
- Perdoa-o, ó pai. Ele não sabe o
que... – dizia o padre, com as mãos erguidas aos céus, quando um déjàvu lhe ocorreu - faz.
- Pois é, este erro também foi grave.
– disse o homem, meio envergonhado – Como o senhor deve imaginar, aquele doido
estragou o time todo. Só fez besteira! Não tive jeito, precisei demiti-lo. Para
seu lugar eu contratei outro treinador gaúcho, já que o Mano deu certo.
- Quem? Felipão, Renato Gaúcho,
Carpegiani ou Celso Roth?
- Nenhum deles, padre. Eu contratei
o Tite.
- É, agora entendo este seu
desespero em se confessar. Adílson e Tite na sequência...
- Não, padre! Na verdade o Tite ainda
está no comando. Naquele ano, ele não conseguiu superar a besteira do Adílson e
acabou não vencendo o campeonato. Aliás, ele conseguiu terminar o ano sem vaga
direta para a Libertadores. No ano seguinte eu persisti em meu erro. O time não
foi campeão novamente! Pior do que isso, fomos eliminados na pré-libertadores
pelo Tolima. Pelo Tolima!!! Ah! Eu preciso de um cigarro...
- Adílson, Tite e perder pro Tolima?
Pode fumar! – Falou o padre em tom debochado.
- Obrigado! – o homem acendeu um
cigarro e prosseguiu – Foi uma tragédia, padre. Lembra aquele ídolo que falei? Ele
se aposentou, não valia mais a pena sentir dor para jogar daquele jeito. E os torcedores então? Entraram em choque! Quanta revolta, quanta tristeza. – as lágrimas
voltaram aos olhos do homem – Foi complicado passar por isso, padre, muito
complicado. A única coisa que me manteve firme foi a construção do estádio.
Agora fiquei sabendo que ele será usado na abertura da Copa de 2014. Não fosse
isso minha situação seria ainda mais grave.
- Filho, você manteve o Tite no
comando depois desta tragédia! Isso é admirável. Você ficou triste, chateado,
mas não irado. Conseguir colocar a razão acima de tudo isso foi uma
demonstração de paciência. Você é um homem de virtudes, não há porque ficar tão
preocupado.
- Mas, padre, - o homem apagou o
cigarro e apontou para ele – e isto aqui? Meu vício de fumante?
- Ora, fique tranquilo quanto a isso,
reze quatro pai-nossos, com arrependimento, e será salvo!
- Acalme-se filho, você fez tudo o
que pôde. Às vezes, não conseguimos o que queremos, por mais que sejamos
merecedores. Às vezes, simplesmente não acontece como esperamos que aconteça.
Todas as suas virtudes ainda serão recompensadas!
- Eu só queria saber quando! Parece
que esse dia não chega nunca. Mas, tudo bem. Obrigado, padre. Vou voltar ao
trabalho agora. A disputa pelo Campeonato Brasileiro está acirrada, preciso
levar esse caneco!
- Pode ir, meu filho, e saiba que a
recompensa não deve tardar! Afinal de contas, algum time tem que ser campeão
brasileiro esse ano.
* Qualquer semelhança com instituições ou personalidades da vida real é mera coincidência... ou não.
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