Um dia, em Santos. Uma quarta-feira, na cidade portuária, de quatrocentos e trinta mil habitantes. A rotina. Trabalhadores recolhem-se no linear do dia. Nas ideias, a continuidade do cotidiano: a comida, a TV e a cama. No entanto, o crepúsculo, que fizera adormecer os raios alvos de sol e acordou a fera sombria, alvejadas por pontos não menos alvos, cintilantes, que demonstravam a imponência da noite, prenunciava o altivo confronto que aconteceria na Vila, onde muitos heróis, meros mortais, mas de futebol indômito, marcaram, não com sangue, mas com memórias indeléveis, suas histórias, alcançando a imortalidade. Santos e Flamengo, confronto que por si já traz uma carga histórica gigantesca de verdadeiros monstros do futebol, degladiar-se-iam diante de uma só torcida (santista), para consolidar a história de guerreiros contemporâneos, assim como Pelé e Zico, por exemplo, estabeleceram outrora.
Quem dera pudesse estar naquele estádio. Quem dera pudesse vivenciar os maiores noventa minutos do futebol brasileiro desse ano. A noite, valeu pelo dia inteiro, fez esquecer a rotina, suplantou as expectativas, venceu o sono, o cansaço daqueles que há pouco davam o suor no maior porto da América Latina. E por que não afirmar aqueles que deram o suor em todo o Brasil? O clássico do futebol não glorificou somente os presentes. Mas, também, os ausentes, que depositaram ali as almas, diante da impossibilidade de presenciar o espetáculo.
Muricy, às vezes, peca pelo excesso. Mas excesso de vontade, que cega sua razão e o faz apenas ser guiado pelo coração. Erro? Não, apenas mudança de postura. Mas, muitas vezes, a alternância entre sentimentos ameaça até os mais poderosos reis da Terra. De caráter, nenhuma queixa. Demonstra-se um dos mais humildes, centrados e trabalhadores do meio futebolístico. Ranzinza, é fato. Mas sacrificaria parte do meu humor cotidiano por metade do comprometimento desse profissional.
No campo de batalha, os times apresentavam soldados de elite prontos para atirar. O Flamengo possuia um reforço venerável, aquele que em qualquer lugar do mundo é considerado Rei. Mas aqui a cobrança sempre é maior. A imagem de um decadente faz encobrir o talento, mas em uma crescente recuperação providencial. Aquele camisa 10 que mesmo não mostrando “o” futebol, poderia mudar toda a história do jogo: Ronaldinho Gaúcho, o Capitão.
O Santos entrava em combate com dois grandes jogadores. Os homens (ou meninos?) de confiança do chefe. Aqueles que provaram ao mundo as suas habilidades. O primeiro, em estado de graça: faz com a bola o que quiser. Neymar, o grande: um futebol inesgotável, de pura vaidade e beleza, com dribles rápidos e tiros precisos. Que cresce, a medida que o adversário enfurece. Como nas velhas touradas espanholas. Domina o touro, por maior que seja. Passadas habilidosas e retóricas da muleta estremessem até o mais temível animal.
Para auxiliá-lo, o fiel escudeiro, aquele que coloca a bola onde quiser. O último passe antes do gol. O cérebro, a razão, sem dribles e sem muitos tiros. Apenas o prazer de servir. Esse é Paulo Henrique Ganso, o equilibrado, que dignifica a posição e estabiliza o time. Um discreto distribuidor de jogadas. Um exímio poeta que constrói toda a escrita para alguém assinar. Não quer créditos. Apenas estrutura a obra para alguém concluí-la com primazia.
E por esses combatentes, a luta, aguerrida, teve um caráter especial. Mas não nos esqueçamos dos não menos importantes lutadores que compunham os respectivos times. Ronaldinho, Neymar e Ganso não formam equipes. Da união de seus parceiros nasce a verdadeira luz que guia o caminho e a bola, em movimentos harmônicos, visando estufar as redes. Cada qual com suas características.
To be continued...
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