domingo, 11 de dezembro de 2011

Conversa com um anjo


“É o tal complexo de vira-latas”, dizia Nelson Rodrigues, acendendo um cigarro. “É uma inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face ao resto do mundo”. Seus olhos me fitavam. “Você tá me entendendo? Nós temos o melhor campeonato, as torcidas mais fanáticas, os melhores jogadores... não era pra ser assim, meu filho. Não era”.

Eu prestava atenção em cada palavra do homem, em cada movimento. Ele gesticulava, falava firme, alternando os goles da cerveja com os tragos do fumo. Pedimos mais uma. “Esse menino Neymar ganha salário de futebol europeu. É por isso que tá ficando. E vai ficar até a Copa. Podem mandar a proposta que for, o Santos não aceita. E é o que temos que fazer, meu filho! Bater de frente com a Europa. Sem brasileiro lá, o brilho do futebol deles acaba. Tá me entendendo?”

Entendia perfeitamente e anotava apressado no bloquinho. “Me diz se um gringo não quer assistir a um campeonato com Ronaldinho Gaúcho, Luís Fabiano, Deco, Ganso, Elano, Montillo, Adriano... Me diz se um gringo não quer acompanhar um torneio que começa com quase dez favoritos ao título. Emoção a cada rodada, até a derradeira. Me diz se qualquer um apaixonado por futebol não quer uma coisa dessas?”

Ele parou de falar por alguns segundos. Apenas observei, esperando que retomasse o pensamento. “Dá pra parar de rabiscar nesse papelzinho?”, esbravejou. “Jornalismo não é isso, não. Presta atenção no velho.” Tremi, engoli seco. Larguei a caneta e prendi os olhos nele. “E vem a Copa do Mundo, rapaz. Isso tudo que vai acontecer aqui no Brasil poderia mudar os rumos do futebol se deixassem um legado, uma estrutura... Mas não acredito. Nós sabemos como são as coisas. Uma pena.” Outro gole. 

“Sabe do que precisamos, meu filho? De gente competente e honesta. Só tem malandro na cartolagem. Sempre foi assim. Cada um pensa no próprio nariz e o futebol fica de lado.” Ele balançou a cabeça desaprovando e resmungou alguma coisa baixinho. Pedi para que repetisse. “Não entendeu? Eu acho mesmo é que estamos jogando tudo pelo ralo.” Pediu a “saideira”. “Você não vai me perguntar nada? Não é jornalista?” Na verdade eu nem precisava, mas tentei elaborar algo rápido e a melhor coisa que me veio a cabeça foi: “o que mudou?”

Ele sorriu, deu mais um trago. “O futebol hoje é negócio. É dinheiro, é empresa. É tudo, menos futebol. Ainda tem a graça e a beleza, apesar de mergulhado no mundo corporativo”, pressionava o cigarro contra o cinzeiro. “E tem coisas que não mudam. Mesmo com tudo para chegar ao topo, o brasileiro enfia o rabo entre as pernas e olha para o padrão europeu como algo inatingível. Eu falo de organização e planejamento. A arte do futebol brasileiro já é, reconhecidamente, a maior. Precisamos nos equiparar em outros sentidos. E a chance está aí, meu filho...” 

Levantou-se e, quase que me provocando, inverteu nossos papéis, deixando no ar a última pergunta da entrevista: “mas e o tal complexo de vira-latas?”

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